Paulo Alberto Corrêa é médico-cirurgião e faz parte do corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo (SP).
Hérnia inguinal é a protrusão de uma alça do intestino através de um orifício que se formou na parede abdominal na região da virilha. As hérnias acontecem por descuido da natureza na formação dessa parede, que tem de suportar pressões muito altas.
Não é só a pressão provocada pelos exercícios que contraem a musculatura do abdômen. Durante o esforço da evacuação, a parede abdominal funciona como uma prensa, prensa de que as mulheres também se valem, na hora do parto, para expulsar o feto do interior do útero.
Existem dois tipos de hérnias inguinais que ocorrem com mais frequência: a direta e a indireta.
A indireta ( imagem 1) se forma pela passagem da alça intestinal para o interior da bolsa que envolve o testículo através de um ponto frágil, o anel herniário.
Já a direta ( imagem 2), como o próprio nome sugere, forma-se diretamente num ponto da parede abdominal enfraquecida, que se rompe, permitindo a penetração de um segmento do intestino na bolsa escrotal.
A imagem 3, num corte lateral do abdômen de um indivíduo do sexo masculino – porque a incidência de hérnias inguinais é maior nos homens – mostra como a alça intestinal foi empurrada para baixo e formou uma hérnia dentro da bolsa escrotal.
FORMAÇÃO DE HÉRNIAS INGUINAIS
Drauzio – O que explica essa fraqueza na parede abdominal que favorece a formação de hérnias inguinais?
Paulo Alberto Corrêa – Hérnia é uma afecção frequente que vem sendo estudada desde a Grécia antiga. Na verdade, a palavra hérnia vem mesmo do grego e quer dizer botão ou rutura.
O canal inguinal é uma região potencialmente fraca da parede abdominal. Por ele, durante a vida intrauterina, passaram os testículos para alojar-se na bolsa escrotal. Esse pequeno espaço é coberto por músculos que deveriam fechá-lo durante a contração abdominal. Entretanto, muitas pessoas têm a inserção desses músculos mais alta, o que torna o espaço maior. Além disso, com o passar dos anos, costuma ocorrer lassidão muscular, isto é, os tecidos ficam naturalmente mais frouxos e podem sofrer rutura que permite a passagem não só de um segmento do intestino delgado e grosso, mas também de outros órgãos da cavidade abdominal.
Drauzio – A fraqueza da parede abdominal é congênita? Ou seja, algumas pessoas nascem com tendência à formação de hérnias?
Paulo Alberto Corrêa – É uma característica constitucional. Tem a ver com o biótipo do indivíduo. Embora não exista uma relação genética imediata (do tipo se o pai tem hérnia, o filho obrigatoriamente irá ter), em algumas famílias, a incidência de hérnia inguinal é maior.
No entanto, é preciso considerar que os movimentos intestinais e a dificuldade para urinar, por exemplo, são fatores de risco para a formação de hérnias, porque podem provocar aumento da pressão abdominal e, consequentemente, rutura de tecidos.
FATORES DE RISCO
Drauzio – Há atividades físicas que facilitam a formação de hérnias?
Paulo Alberto Corrêa - Toda a atividade que exige emprego de grande força física pode facilitar o aparecimento de hérnias, principalmente nas pessoas com predisposição. Portanto, atletas de alta performance, trabalhadores braçais, indivíduos com constipação intestinal (prisão de ventre), ou que desenvolveram problemas na próstata e fazem força para urinar, estão mais sujeitos ao aumento da pressão intraabdominal, que pode provocar rutura dos tecidos e o aparecimento de hérnia.
Especificamente em relação ao exercício físico que muitos jovens gostam de fazer nas academias, é preciso esclarecer que eles podem levantar pesos se a atividade for feita de forma lenta e progressiva, respeitando o ritmo de adaptação do organismo. Se tiverem história familiar de hérnias, porém, pode ser que venham a apresentar a afecção, mas não há como prever nem prevenir que isso aconteça. Por isso, acho que as pessoas devem levar a vida sem se preocupar muito com essa possibilidade. Caso o problema se manifeste, cabem as providências disponíveis para trazê-las de volta à normalidade.
Drauzio – Quais os exercícios que mais podem provocar a formação de hérnias inguinais?
Paulo Alberto Corrêa – Todos os exercícios que fazem a musculatura contrair-se de forma a aumentar a pressão dentro da cavidade abdominal e a rutura dos tecidos. Entre eles, destacam-se os exercícios de agachamento e dos membros superiores e inferiores, assim como os exercícios isotônicos e os isométricos.
Drauzio – Correr e nadar também estão nessa lista?
Paulo Alberto Corrêa – Natação é o esporte que mais respeita nosso organismo em termos de articulações e musculatura. Por isso, é recomendado por todos e especialmente pelos profissionais ligados à medicina esportiva. Já a corrida seguramente leva ao aumento da pressão abdominal e, por ser um exercício constante que produz impacto, pode facilitar o aparecimento de hérnias inguinais. Caminhar e andar de bicicleta causam menor dano e podem ser praticados com tranquilidade.
PREVENÇÃO E SINTOMAS
Drauzio – O que podem fazer as pessoas com tendência à formação de hérnias inguinais para prevenir seu aparecimento?
Paulo Alberto Corrêa – Não existe prevenção. Portanto, se não há como prevenir, o indivíduo deve levar vida normal. Caso tenha tendência, a pessoa correrá o risco de desenvolver uma hérnia e deve procurar tratamento tão logo sinta uma dorzinha e um abaulamento na região inguinal.
Existem próteses para evitar que a hérnia progrida. São cintas elásticas e fundas que mantêm forte pressão sobre o ponto em que está havendo rutura do tecido. Essas próteses, porém, acabam interferindo na qualidade de vida dos portadores de hérnia. A única forma de tratamento eficaz á a cirurgia.
Drauzio – Como é que a pessoa percebe que têm uma hérnia inguinal?
Paulo Alberto Corrêa – Voltando à etimologia da palavra, hérnia quer dizer botão ou rutura. É preciso lembrar também que a região inguinal, no homem, fica entre o pênis e a ossatura da bacia e, na mulher, entre a vulva e o osso da bacia. Nos dois gêneros, é uma região bastante restrita, do lado esquerdo e direito do corpo. Por isso, a hérnia pode ocorrer em um dos lados do corpo ou ser bilateral.
O primeiro sintoma da hérnia é um abaulamento ou nódulo na região inguinal, acompanhado de dor e desconforto quando a pessoa se levanta ou pratica alguma atividade física. Quando se deita ou fica quieta, a hérnia se recolhe e o nódulo desaparece.
Drauzio – A dor sempre aparece?
Paulo Alberto Corrêa – Habitualmente, sim. Uma das primeiras queixas do portador de hérnia é dor local e limitação para atividades físicas mais vigorosas.
Drauzio – Como evolui a hérnia que não recebe tratamento?
Paulo Alberto Corrêa – Muitos indivíduos saem correndo assim que notam o aparecimento de uma hérnia com medo das complicações. Na verdade, a doença vai evoluindo gradativamente. Não aparece uma hérnia enorme de uma hora para outra. Ela começa pequena e vai aumentando de acordo com o esforço físico despendido. Com o passar dos anos, porém, as hérnias podem ocupar espaços bastante grandes. Em alguns casos, quando descem para a bolsa escrotal, podem chegar até os joelhos, se não forem tomadas as providências terapêuticas adequadas.
Portanto, ao registrar o primeiro sintoma, a pessoa deve procurar um médico. Primeiro, para certificar-se que é realmente uma hérnia; depois, para informar-se sobre o melhor momento para livrar-se dela.
TRATAMENTO
Drauzio – As hérnias, quando aparecem, podem beneficiar-se de compressores locais, as fundas, que antigamente eram muito populares, mas representam um tratamento paliativo. Hoje, está provado que só a cirurgia promove a cura definitiva. Qual é o momento ideal para indicá-la?
Paulo Alberto Corrêa - Hérnias inguinais muito pequenas ou muito grandes raramente complicam. O risco maior está nas hérnias de tamanho intermediário, porque o intestino sai pelo orifício e não consegue voltar. Sofre um encarceramento. Como, às vezes, pode ocorrer uma rotação, o sangue deixa de circular, e aquele segmento intestinal gangrena, fica necrosado. Essa é uma situação de emergência que não existe quando a hérnia é pequena ou muito grande, circunstâncias que permitem programar a melhor data para a cirurgia.
Ninguém mais discute que, quanto menor a hérnia, maior o sucesso do tratamento cirúrgico. Se ela crescer muito, os tecidos se tornarão frágeis, a dissecção do saco herniário será trabalhosa e, como consequência, haverá mais inchaço (edema) e mais desconforto no pós-operatório.
Vale repetir, então, que a cirurgia é o único tratamento eficaz para as hérnias e o portador se beneficiará se procurar atendimento médico numa fase precoce da doença.
Drauzio – Isso quer dizer que não existem remédios para o tratamento das hérnias?
Paulo Alberto Corrêa – O único remédio é o bisturi.
Drauzio – Você tocou num ponto fundamental. As hérnias muito pequenas não provocam complicações, porque não dão espaço para o intestino penetrar. Nas muito grandes, o espaço é suficiente para o intestino penetrar na bolsa escrotal e movimentar-se dentro dela. O problema são as hérnias de tamanho intermediário que podem estrangular o intestino. Conhecidas como hérnias estranguladas, elas são as de maior risco…
Paulo Alberto Corrêa – Essa situação deve ser evitada, porque exige tempo maior de internação hospitalar e pressupõe risco de infecção grave e perda de um segmento do intestino, pois não basta só a correção da hérnia. O intestino que sofreu estrangulamento e, às vezes, rotação, precisa ser ressecado, isto é, o paciente perderá parte do intestino e receberá uma anastomose (sutura entre as duas extremidades que foram cortadas). Dependendo da idade, esse quadro, que é grave, pode tornar-se mais perigoso ainda.
Há casos em que a pessoa tem uma hérnia encarcerada crônica, isto é, uma hérnia com espaço bastante grande para o intestino entrar e sair à vontade. No entanto, se ingerir um alimento que fermente mais, o gás pode impedir essa movimentação, e o desconforto só diminui à medida que ele for sendo eliminado. Desse modo, o paciente consegue conviver com hérnias volumosas, com pequeno risco de estrangulamento, embora a qualidade de vida seja ruim. É muito importante não deixar o quadro chegar a esse ponto, uma vez que o resultado da cirurgia não será tão bom quanto ao das realizadas em fase mais precoce.
Drauzio – Você poderia explicar o que é anastomose nas cirurgias das hérnias estranguladas?
Paulo Alberto Corrêa – O segmento do intestino que ficou encarcerado no anel herniário sofre perda da circulação e entra em necrose. Por isso, precisa ser retirado. Sobram, então, duas partes viáveis do intestino que são unidas e costuradas para recompor o caminho por onde passarão os alimentos durante o processo de digestão. Essa costura pode ser feita com fios cirúrgicos ou com grampos metálicos.
Drauzio – Nesses casos, a cirurgia é complicada porque não se restringe à parede abdominal, uma vez que é preciso intervir no intestino…
Paulo Alberto Corrêa – Dependendo da extensão do problema, se não há segurança de que a área ficou bem irrigada, é preciso fazer uma laparotomia, ou seja, abrir o abdômen para olhar internamente. Daí a importância do tratamento precoce. Ele é fundamental para evitar complicações que requerem procedimentos mais agressivos.
CIRURGIAS
Drauzio – Cirurgias para a correção de hérnia são procedimentos muito antigos. Gostaria que você explicasse como eram realizadas?
Paulo Alberto Corrêa – A primeira técnica cirúrgica que se mostrou eficaz para a correção da hérnia inguinal data da metade do século XIX e foi desenvolvida pelo cirurgião italiano Eduardo Bassini. Através de uma incisão na pele, o médico alcança o tecido celular subcutâneo e chega à aponeurose, uma membrana que reveste os músculos. Depois, atinge a região do funículo espermático (ou cordão espermático) que se estende até a proximidade do osso púbico, local onde se formam as hérnias inguinais ( imagem 4). Agindo desse modo, o cirurgião localiza o peritônio, camada que recobre as alças intestinais, e a musculatura junto à fascia transversal que recobre o peritônio. A seguir, aproxima os músculos oblíquo externo e transverso, que deveriam fechar o espaço, em direção ao osso púbico e à arcada inguinal para reforçar a parede do abdômen e impedir que a hérnia se forme novamente.
Portanto, segundo essa técnica, respeitando a anatomia do local, fecha-se a área de fraqueza da parede com a aproximação dos tecidos. O problema é que nem sempre esses tecidos se encontravam em boas condições. Era preciso puxar um músculo e a aponeurose para baixo a fim de prendê-los numa estrutura forte para tentar fechar o espaço. Isso provocava dor e limitação importante no pós-operatório. O paciente ficava com dificuldade para andar e tinha restrições para dirigir automóvel.
Doentes acompanhados por longos períodos de tempo mostraram que o índice de recidiva era de 25%. Fios de sutura melhores e o aprimoramento da técnica fizeram com que esse índice caísse para em torno de 5%, 7% dos casos, nos primeiros anos depois da cirurgia. Portanto, um em cada vinte pacientes pode apresentar novamente a doença, índice que ainda continua alto.
Drauzio – Essa técnica foi usada por muitos anos.
Paulo Alberto Corrêa – Muitos e muitos anos. Aliás, ainda hoje é utilizada, principalmente nos lugares que dispõem de poucos recursos para o tratamento dessa afecção, porque é relativamente simples e não requer material sofisticado para sua realização.
Drauzio – Como são as técnicas mais modernas para o tratamento das hérnias?
Paulo Alberto Corrêa – Na década de 1950, um médico americano chamado Usher desenvolveu uma técnica cirúrgica que utilizava uma tela feita de tecido plástico para fechar o orifício herniário ( imagem 5). Mas, foi só a partir de 1970, que essa técnica passou a ser empregada com mais regularidade.
No começo, foram observadas algumas complicações decorrentes do uso de tais próteses. Lenta e paulatinamente, porém, o processo de fabricação foi melhorando e as telas atuais são extremamente inertes e não causam nenhum tipo de reação adversa. Na hipótese de haver alguma infecção, o tratamento pode ser feito sem que elas sejam retiradas.
Como se vê, o uso da tela promoveu um tratamento sem tensão muscular. O orifício herniário é recoberto com a tela, o que evita puxar a musculatura e a aponeurose em direção da arcada inguinal. A tela simplesmente cobre o espaço em que havia fraqueza do tecido abdominal, como se fosse um manchão de pneu. Trata-se de uma técnica indolor que reduziu drasticamente os índices de recidiva das hérnias inguinais para um em cada dois mil casos operados. Feita com anestesia local não requer internação hospitalar. O paciente é operado, levanta e vai embora para casa.
Drauzio – Você disse que a tela pode ser colocada facilmente com anestesia local…
Paulo Alberto Corrêa – Em geral, faz-se um pequeno corte na região inguinal, dissecam-se os tecidos e coloca-se a tela na região em que há fraqueza da parede abdominal. Se as hérnias pélvicas volumosas forem dos dois lados, pode-se fazer uma incisão que vai do umbigo até a região do púbis, passa-se por trás dos músculos, ultrapassa-se o peritônio que cobre as alças intestinais e coloca-se uma tela bastante grande para fechar todos os espaços onde elas ocorrem. Essa via posterior de acesso é bastante utilizada nas hérnias bilaterais volumosas, porque, em vez de dois cortes, faz-se um corte só e o índice de recidiva é baixíssimo.
Drauzio – Como essas cirurgias podem ser feitas por via laparoscópica?
Paulo Alberto Corrêa – Seguindo os mesmos passos da cirurgia por via posterior, é possível corrigir as hérnias inguinais por laparoscopia. Através de um pequeno furo no umbigo, coloca-se um aparelho ótico acoplado a uma câmara de televisão e examina-se o intestino. Por outros dois pequenos furos, são introduzidas pinças e uma tesoura. Localizado o espaço entre o peritônio e a musculatura da região inguinal em que a parede está comprometida, coloca-se a tela. Esse método tem a vantagem de ser praticamente indolor e permitir que a cirurgia seja realizada sem cortes, através de três pequenos furos, mas tem o inconveniente de exigir anestesia geral e internação hospitalar. Além disso, o material laparoscópico é caro.
O outro ponto crítico dessa técnica é o fato de violar a cavidade peritoneal. Por isso, alguns cirurgiões desenvolveram a técnica extraperitoneal (igual à da cirurgia de Stoppa), em que não é necessário penetrar na cavidade intra-abdominal. Através dos três buraquinhos, separa-se a musculatura da região do peritônio e coloca-se a tela, exatamente do mesmo modo que se faz, quando existe o corte que vai do umbigo até o púbis. Isso representa ganho real para o paciente, que recebe alta no dia seguinte ao da operação.
Drauzio – Você disse que a colocação da tela por via cirúrgica podia ser feita no consultório sob anestesia local e que os resultados são até muito bons. Difícil dizer que outra técnica deva ser empregada no lugar dessa que oferece tantas vantagens.
Paulo Alberto Corrêa – Quem tem preferido a técnica laparoscópica extraperitoneal, por exemplo, são os atletas de alta performance que precisam recobrar logo a atividade física e os indivíduos preocupados com a estética, porque os três pequenos orifícios feitos para introduzir os aparelhos deixam marcas mínimas. Em relação aos resultados futuros das duas técnicas cirúrgicas, a céu aberto e por laparoscopia, estudos têm mostrado que o risco de recidivas é praticamente o mesmo. Em vista disso, particularmente, acho que, ponderando os custos, em termos populacionais, é melhor optar pela cirurgia por via anterior com a tela. Entretanto, a decisão final fica sempre por conta do paciente que pode ter motivos para optar pela cirurgia por via extraperitoneal.
Fonte: Dr. Drauzio Varella
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